Como ter uma dieta saudável e sustentável, de acordo com a Comissão EAT-Lancet

No passado dia 16, a Comissão EAT-Lancet lançou o relatório “Food in the Anthropocene: the EAT–Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems”, disponível aqui. Esta comissão juntou mais de 30 cientistas de todo o mundo de forma a reunir um consenso científico sobre o que define uma dieta saudável e sustentável. Trago-vos aqui os pontos mais importantes apresentados no relatório:

  • As dietas ligam, inevitavelmente, a saúde humana e a sustentabilidade ambiental. Dietas pouco saudáveis e insustentáveis apresentam um risco glocal para as pessoas e para o planeta. A alimentação que temos hoje em dia, combinada com uma população estimada de 10 mil milhões de pessoas em 2050, vão exacerbar ainda mais este risco.
  • Em todo o mundo, mais de 820 milhões de pessoas não têm comida suficiente e muitas mais têm dietas de baixa qualidade que contribuem para a morte prematura e morbilidade. Estas dietas causam carências em micronutrientes, contribuindo para o aumento substancial da incidência de doenças relacionadas com a alimentação como a obesidade e as doenças não transmissíveis, incluindo doença coronária, AVC e diabetes.
  • A dieta saudável padrão [definida pela Comissão] consiste numa diversidade de alimentos de origem vegetal, quantidades pequenas de alimentos de origem animal, gorduras insaturadas em alternativa às saturadas, e uma baixa quantidade de grãos refinados, alimentos excessivamente processados e açúcar.
  • Estima-se que os sistemas alimentares possam fornecer uma dieta saudável (como a dieta saudável padrão) para as 10 mil milhões de pessoas que seremos em 2050. Para que isso seja possível, será necessário reduzir em mais de 50% o consumo de alimentos pouco saudáveis, como a carne vermelha e o açúcar, e aumentar em mais de 100% o consumo de alimentos saudáveis, como os frutos gordos, fruta, hortícolas e leguminosas. Pequenos aumentos no consumo de carnes vermelhas ou produtos lácteos podem levar a que seja difícil ou impossível de atingir este objetivo.
  • As dietas vegetarianas, de acordo com o maior estudo prospetivo sobre o tema, estão associadas a uma menor mortalidade comparativamente com uma dieta não vegetariana.

Sobre a carne:

  • Nos anos 60, quando a incidência de doença coronária e mortalidade global eram baixas nos homens gregos, a sua ingestão média de carne vermelha e de aves era de 35g/dia.
  • Atualmente, e devido à sua associação com o cancro colorretal, as carnes processadas são classificadas como carcinogénicas (grupo 1) e as carnes vermelhas não processadas como carcinogénicas (grupo 2).
  • A substituição das fontes proteicas de origem animal por fontes proteicas de origem vegetal está associada a uma redução substancial da mortalidade global. Um trabalho verificou que substituir 3% das calorias fornecidas pela carne processada reduziu o risco de mortalidade em 34%. Quando foi a carne vermelha a ser substituída, a redução de risco foi de 12%.
  • O elevado risco de doenças cardiovasculares e de outras patologias associadas ao elevado consumo de carnes vermelhas está provavelmente associado aos múltiplos constituintes alimentares das fontes proteínas de origem animal. A maior taxa de gordura saturada do que de gordura polinsaturada, o elevado nível de carcinogéneos produzidos durante confeção dos alimentos e o ferro heme podem contribuir para um maior risco de doenças cardiovasculares, diabetes e alguns tipos de cancro em pessoas que consomem carnes vermelhas do que em pessoas que consomem proteínas de origem vegetal.
  • A composição das carnes processadas é heterogénea, mas muitas delas contêm elevadas quantidades de sódio, nitratos, nitritos e outro conservantes que podem potenciar os riscos de cancro.
  • Porque a ingestão de carne vermelha não é essencial e aparenta estar linearmente relacionada com a mortalidade global e com o risco de outros problemas de saúde nas populações que a têm consumido ao longo dos anos, a ingestão ideal deste alimento pode ser de 0g/dia, substituindo-a especialmente por fontes proteicas de origem vegetal. Porque a informação acerca dos riscos da baixa ingestão de carne vermelha é imprecisa, conclui-se que uma ingestão de 0g/dia a cerca de 28g/dia de carne vermelha é desejável, com um ponto médio de referência de 14g/dia. Como o consumo de carne de aves tem sido associado a melhores resultados em saúde do que a carne vermelha, conclui-se que o consumo ideal de carne de aves é de 0g/dia até 58g/dia, com um valor médio de referência de 29g/dia.

Sobre os lácteos:

  • Uma revisão da OMS notou que as regiões com uma baixa ingestão de produtos lácteos e de cálcio têm menores taxas de fraturas do que as regiões que consomem maiores quantidades, concluindo que a ingestão de 500mg/dia é adequada e que baixas ingestões podem ser apropriadas em áreas com menores taxas de fraturas. O Reino Unido concluiu que 700mg/dia são suficientes.
  • Embora os estudos prospetivos tenham sido bastante heterogéneos, as evidências gerais sugerem que entre adultos o risco de fraturas não é substancialmente reduzido com a ingestão de cálcio a cima das 500mg/dia.
  • Os dados acerca do consumo de laticínios na infância e adolescência e do seu efeito na saúde a longo prazo são escassos, mas uma elevada ingestão pode ser particularmente importante para o crescimento esquelético. Contudo, o elevado consumo de leite por raparigas adolescentes não está associado à redução do risco de fraturas da anca mais tarde na vida, e em rapazes adolescentes a ingestão elevada de leite está associada ao aumento do risco de fraturas.
  • Estudos prospetivos não observaram um aumento ou diminuição significativa no risco de mortalidade geral ou de doenças cardiovasculares através do consumo elevado de produtos lácteos, embora a mortalidade geral e cardiovascular é provável que diminua se os produtos lácteos forem substituídos por frutos gordos ou outras fontes proteicas vegetais.
  • O elevado consumo de leite, provavelmente devido ao seu conteúdo em cálcio, está associado à redução do risco de cancro coloretal, mas por outro lado aumenta o risco de cancro da próstata em homens, especialmente em casos avançados. Algumas evidências sugerem que o iogurte pode reduzir o risco de diabetes e de ganho ponderal.

Sobre o peixe:

  • A ingestão de peixe tem sido associada à redução do risco de doenças cardiovasculares. O peixe [gordo] tem um elevado conteúdo em ácidos gordos ómega-3, que exercem muitas funções essenciais, incluindo no nosso sistema nervoso.
  • Os peixes que se encontram no topo da cadeia alimentar, como o atum e o carapau, podem bioacumular mercúrio, que apresenta toxicidade neurológica. A toxicidade do mercúrio pode ser evitada através do consumo de peixes pequenos.
  • Os ácidos gordos ómega-3 obtidos através de fontes vegetais (especialmente o ácido alfa-linolénico) têm sido associados à redução do risco de doença coronária [podendo funcionar como alternativas ao peixe gordo].

Sobre os ovos:

  • Os ovos são uma fonte largamente disponível de proteína de elevada qualidade e de outros nutrientes essenciais necessários para sustentar um rápido crescimento. Apesar da preocupação do passado sobre possíveis aumentos no risco de doenças cardíacas devido ao seu elevado conteúdo em colesterol, em bastantes estudos prospetivos o elevado consumo de ovos, até um por dia, não tem sido associado ao aumento do risco de doença cardíaca, exceto em pessoas com diabetes. No entanto, a comparação padrão nestes estudos tem sido a dieta tradicional, que está longe de ser a ideal [é possível que o impacto seja diferente se comparássemos com uma dieta saudável de base vegetal].

Sobre outros alimentos:

  • O consumo de frutos gordos reduz as concentrações de lípidos no sangue, o stress oxidativo, a inflamação, a viscosidade visceral, a hiperglicemia e a resistência à insulina.
  • O elevado consumo de frutos gordos tem sido associado à redução de risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e mortalidade global.
  • As leguminosas promovem a redução das concentrações de colesterol-LDL e a pressão sanguínea em vários estudos. O consumo destes alimentos tem sido associado a um menor risco de doença coronária do que o consumo de carne vermelha.
  • Os fitoestrogéneos nos alimentos à base de soja têm um baixo efeito estrogénico, podendo bloquear a ação de estrogénios endógenos e, deste modo, reduzir o risco de cancro da mama e de outros cancros hormonais. No Shanghai Women’s Health Study, o consumo de alimentos à base de soja durante a infância e no início da vida adulta esteve inversamente associado ao risco de cancro da mama pré-menopausa.
  • A ingestão elevada de cereais integrais e de fibra desses mesmos cereais tem sido associada a um risco reduzido de doença coronária, diabetes tipo 2 e mortalidade global.
  • Os grãos refinados são a maior fonte de hidratos de carbono de elevado índice glicémico. Estes têm efeitos metabólicos adversos e estão associados a um aumento do risco de alterações metabólicas, ganho de peso e doenças cardiovasculares.
  • Evidências substanciais indicam que o consumo de fruta e vegetais também é importante para a prevenção de doenças cardiovasculares; este benefício é atingido principalmente através do consumo de 5 porções por dia, contudo ingestões superiores podem providenciar mais benefícios. A elevada ingestão de vegetais reduz a pressão arterial e está associada à redução do risco de diabetes tipo 2.
  • Evidências sustentam uma redução substancial do risco da doença cardiovascular através da substituição da gordura saturada por gorduras vegetais insaturadas, especialmente as com elevado teor de gorduras polinsaturadas (que incluem ácidos gordo ómega-3 e ómega-6).
  • No estudo PREDIMED, em comparação com uma dieta baixa em gordura, a dieta Mediterrânica rica em azeite extra virgem reduziu a incidência de doenças cardiovasculares e melhorou a função cognitiva.
  • A gordura láctea tem uma elevada percentagem de ácidos gordos saturados e está associada a um maior risco de doença coronária do que as gorduras vegetais insaturadas.
  • A evidência aponta para o consumo de gordura vegetal baixa em gordura saturada como alternativa às gorduras animais.
  • Uma elevada ingestão de açúcares adicionados, especialmente em bebidas açucaradas, tem sido associada ao ganho de peso, diabetes tipo 2 e aumento da mortalidade cardiovascular.
  • Pelo facto do açúcar não possuir valor nutricional e ter efeitos metabólicos adversos, recomenda-se o limite de 31g/pessoa por dia, ou menos de 5% de energia [referente a açúcares livres – não só o dos alimentos que têm açúcar adicionado, mas também o açúcar que nós adicionamos nos alimentos].

Considerações especiais:

  • As recomendações globais e mais regionais recomendam que as crianças devem ser exclusivamente amamentadas durante os primeiros 6 meses de vida, prolongando a amamentação até, pelo menos, aos 2 anos. Os benefícios incluem um crescimento e desenvolvimento cognitivo saudáveis, bem como uma possível redução do risco de excesso de peso ou obesidade e de desenvolver doenças não transmissíveis mais tarde.
  • As raparigas adolescentes correm o risco de deficiência em ferro devido ao rápido crescimento combinado com as perdas menstruais. As perdas menstruais têm sido por vezes uma das razões para aumentar o consumo de carne vermelha, mas suplementos multivitamínicos e multiminerais são uma alternativa menos dispendiosa e que evitam as consequências adversas do elevado consumo de carne vermelha.
  • Durante a gravidez e lactação, a ingestão excessiva de proteína de origem animal tem sido associada ao aumento do risco de obesidade na descendência 20 anos mais tarde.

Sobre a sustentabilidade:

  • A produção de alimentos causa riscos significativos para o ambiente e, daí, uma transição para uma produção alimentar sustentável é necessária para um desenvolvimento global sustentável.
  • A produção alimentar sustentável, a pensar nos 10 mil milhões de pessoas que seremos em 2050, não deve usar terrenos adicionais, salvaguardando a biodiversidade existente; deve reduzir o consumo de água, gerindo com responsabilidade a utilização da mesma; deve reduzir substancialmente a poluição com azoto e fósforo; não produzir emissões de dióxido de carbono; e não causar mais aumentos nas emissões de metano e de óxido nitroso.
  • A mudança para uma produção alimentar sustentável até 2050 exigirá uma melhor ocupação dos solos, melhorias radicais na eficiência do uso de fertilizantes e água, uma rápida implementação de mecanismos de redução das emissões de gases com efeito de estufa, e uma mudança fundamental nas prioridades de produção.
  • Atingir estas metas irá depender também dos cuidados de saúde primários, incluindo o planeamento familiar e a educação para uma alimentação saudável.
  • A obtenção de dietas saudáveis a partir de sistemas alimentares sustentáveis para todos exigirá mudanças substanciais no nosso comportamento alimentar, incluindo grandes reduções no desperdício alimentar e grandes melhorias nas práticas de produção de alimentos.
  • Esta meta universal para todos os seres humanos está ao nosso alcance, mas exigirá uma série de ações por parte dos indivíduos e também das organizações que trabalham em todos os setores e em todas as escalas.

Resumindo

Padrões alimentares com as seguintes caraterísticas promovem um baixo risco de doenças crónicas graves e o bem-estar geral:

  • (1) fontes proteicas principalmente de origem vegetal, incluindo alimentos à base de soja, outras leguminosas e frutos gordos; pescado ou fontes alternativas de ácidos gordos ómega-3; consumo moderado opcional de carne de aves e ovos; baixa ingestão de carne vermelha, ou nenhuma, especialmente carne processada;
  • (2) gordura principalmente de fontes vegetais, com baixa ingestão de gorduras saturadas e sem gorduras parcialmente hidrogenadas;
  • (3) hidratos de carbono principalmente de cereais integrais; baixa ingestão de cereais refinados e menos de 5% de energia derivada do açúcar;
  • (4) pelo menos 5 porções de frutas e vegetais por dia (sem considerar a batata);
  • (5) consumo moderado de laticínios, opcionalmente.

A adoção global de uma dieta saudável a partir de sistemas alimentares sustentáveis salvaguardaria nosso planeta e melhoraria a saúde de milhões de pessoas.

Imagens retiradas do resumo do relatório, disponível aqui.

As informações entre parêntesis retos são da minha autoria e foram acrescentados com o objetivo de esclarecer ou acrescentar alguma informação relevante.

Espero que este artigo vos seja útil. Qualquer dúvida disponham 🙂

One thought on “Como ter uma dieta saudável e sustentável, de acordo com a Comissão EAT-Lancet

  1. Olá bom dia!! Queria tirar uma dúvida, nunca fui muito fan de carne, eu vi um vídeo de animais em péssimo estado, para ser consumido, e decidir não comer carne qual seria o primeiro passo que devo tomar?

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